sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Para os outros (1)

Sou um bom leitor. Durante muito tempo acalentei o sonho secreto de escrever longos romances, versos fugidios e sedosos como o mar. Mas depressa percebi que não era essa a minha verdadeira vocação. Na altura o pensamento atingiu-me repentinamente, com a força como a de um relâmpago inegável, e não tive outra hipótese senão repeti-lo baixinho a mim próprio: "Sou um bom leitor." Era-o ainda mais porque parecia estar a ler palavras gravadas no interior da minha própria cabeça, compostas naquela exacta ordem muito antes de mim para serem recitadas. Durante dias e noites em branco tive a oportunidade de confirmar a vocação, percorrendo vorazmente parágrafos inteiros, tomado de uma sôfrega sede. Primeiro os grandes pilares da civilização, as leituras clássicas, os estereótipos. Depois os melhores romances contemporâneos, biografias históricas, as obras que poetas e prosadores levaram a vida inteira a compor. Estendi-me um pouco pelo campo da astrofísica e das matemáticas, mas percebia bem que não preenchiam a minha necessidade de letras e de histórias. Necessidade que, por fim, começou a pesar, carente de um objectivo concreto - além do extremamente vago de ler tudo o que alguma vez havia sido escrito. Não porque o achasse inalcançável ou sequer demasiado complicado; simplesmente ler por ler já não me satisfazia. Precisava de mais.

Comecei a aprender línguas novas para não ter de ler traduções em que nem sempre podia confiar. Aprendi finlandês enquanto lia em francês Proust, Balzac e Malraux, árabe para finalmente compreender as Mil e Uma Noites enquanto percorria Borges, Gárcia Marquéz e Jiménez em castelhano. Quando já lia fluentemente (se é que se pode ler como se fala, com a pontuação correctamente colocada, páginas por ordem e capítulos numerados) em mais de trinta línguas, senti mais uma vez a carência de algo mais profundo que me iniciara antes nessa empresa linguística. Desta vez não havia como escapar ao sentimento de desolação que me assolava quando a custo abria um livro e tentava , pelo menos, folheá-lo. Sem perceber a origem do meu problema, errei por todo o tipo de literatura esconsa a que pude chegar as mãos. Li continuações de ficção científica não autorizadas pelos autores dos livros originais, li pequenos romances de cordel que se vendem nas estações de comboio e contos pornográficos homossexuais com títulos como As Traças. Nada conseguiu apaziguar-me. Comecei a sofrer como um viciado a que recusassem a única droga de que precisa, porque já ler não me acalmava, não ler era-me impossível. E foi assim até que tropecei na solução.

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