domingo, 1 de novembro de 2009

Para os outros (2)

Como é que alguém pode sobreviver tanto tempo apenas lendo? No meu caso, o destino tinha-se encarregado de me dar antecipadamente a resposta, na forma de um tio rico e convenientemente falecido. Por isso nunca me tinha preocupado muito com uma forma de subsistência; limitava-me a comprar livros a todos os preços, que depois vendia por aquilo que me quisessem dar. Comia pouco, e dormia em qualquer parte. Fará sentido, desta forma, o que direi a seguir: tropecei (na verdade ia caindo, pormenores de gravidade) num jornal aberto no chão, e quase caí de nariz num anúncio inédito: Precisa-se leitor(a). Nem consegui ler mais nada - o que é, pode-se imaginar, muito estranho em mim - até ao dia seguinte, em que acordei embriagado com a perspectiva da entrevista que me esperava. (A suprema ironia, contudo, esperava-me na casa da velha senhora que tinha posto o anúncio.)

A casa da Sra. Antoinette cheirava a mofo e a napperons, como todas as casas de senhoras da sua idade costumam cheirar. Não tinha gatos, felizmente; tivesse e não teria conseguido destrinçar realidade e ficção, quando tremendo muito ela me pediu para tirar a Bíblia do móvel e começar a leitura pelo Evangelho de S.Lucas. Já tinha lido a Bíblia, claro - nem a religião tinha resistido à minha fúria devoradora. Tinha até lido versões mórmones e baptistas, e não havia nada mais prevísivel para a sua idade e posição do que esta sua escolha. Sentei-me solenemente na cadeira que me ofereceu, abri os santos evangelhos com precisão matemática, aclarei a voz. Sentia-me peixe na água, criminoso perdoado ao fim de anos de penitência. A solução estava ali, dentro de mim e à minha volta, o objectivo a formar-se diante dos meus olhos sem que eu pudesse fazer nada para o alterar. Não quereria alterá-lo, longe disso; esperava-o sorridente e de braços abertos, numa ânsia quase desesperada. Foi aqui que o Destino ou a Fortuna (quiçá os dois) resolveu dar a estocada final. E dois parágrafos depois a Sr. Antoinette pediu-me polidamente para parar. "Desculpe..." Basicamente não gostou da minha leitura. Despediu-se com muitas delicadezas, e pedidos de desculpa pelo incómodo.

Eu, que certamente havia lido mais do que qualquer outra pessoa no mundo, não sabia ler em voz alta.

Benedita, 31 de Julho de 2009

2 comentários:

Esquila disse...

Comecei no segundo parágrafo a lê-lo em voz alta...intuitivamente.Querendo sorver a beleza de cada palavra, tão escolhida a dedo...e tão livre.E eis que chego ao final. Um sorriso rasgou-me a face.

R.Joanna disse...

Afinal sempre houve comentário, apesar de ser público e tudo :P

Fiquei mesmo muito contente por tu, especialmente, teres gostado. Se não quisesse mesmo saber o que pensavas não insistia tanto para ultrapassar todas as tuas reticências relativamente à minha autonomização de partes de mim :)